Dos Refugiados, da Morte e do Capão

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Leila  Alaoui  é uma fotógrafa brilhante, e ela é minha amiga desde que começou a tirar fotos, anos atrás. Nós morávamos em Nova York. Eu já visitei sua casa no Marrocos, e ela já esteve no Brasil outras vezes.  Agora ela mora no Líbano, e trabalha com refugiados da Síria. Leila foi a primeira pessoa que eu falei pelo Skype quando voltei e mal conseguia falar.  Falamos em Frances o que era intrigante. Eu, que mal falava de novo português, podia falar de tudo com ela. Sobre todos os absurdos que passavam na minha mente. Leila sempre foi assim, capaz de entender o que se está passando, dando o espaço e o tempo do outro.  Ela me fez de fato, querer falar de novo, e um dia, ela me fez querer escrever dos outros, de novo. Fazia tempo que eu não escrevia nada, que não fosse uma análise cerebral, mas Leila me ligou e mais uma vez na sua enorme generosidade mudou meu mundo para melhor.

Leila 2

 

Enquanto falávamos, ela me contou de um filme que tinha feito. Quando o vi, fiquei totalmente tocada, disse na hora que falaria sobre ele… primeiro em Inglês porque era para ela, depois quando contei a história aqui na cozinha da minha casa, pediram me que devia ser escrito em Português. No fundo acho que é mais fácil para mim escrever em Inglês. E dificílimo é re-escrever o mesmo texto em duas línguas…. ( ou melhor meio chato). No entanto, Claudia, e Cre aqui de casa têm razão, esse texto devia poder ser lido por quem não sabe falar Inglês. Então peço desculpa pelas minhas mal traçadas linhas e tento o difícil… escrever na língua da minha alma….. a que eu não sei.

Leila trabalhou com refugiados, sobreviventes de guerra, morou e tirou fotos dessas pessoas que ela conheceu bem. E enquanto falávamos ela me pediu uma coisa que eu achei muito intrigante:

“Posso te filmar?”

“Leila, me filmar? Para que? O que eu posso te dizer de interessante?”

O filme dela era tão bonito, com desertos, refugiados, caminhos e histórias… Enquanto eu o via, chorei.

Leila

Então eu disse a ela, o que eu quero dizer aqui.  Contei a ela sobre tudo que tinha me feito pensar aquele filme. Não simplesmente sobre a beleza da fotografia, e do filme, mas do fato que eu tinha sido transportada de volta para fronteira da Africa e a Europa. Essa que pelos abusos  do colonialismo se dá ali no continente Africano. Ceuta, fica na Africa, mas hoje em dia, é Espanha.

Depois desses anos, eu ainda me lembro perfeitamente daquela fronteira. São poucas as coisas que eu me lembro tão bem, no entanto, vendo o filme, não só as imagens me popularam, mas também as sensações.

Havia tanta gente ali. Eu estava voltando para o Marrocos, depois de passar apenas uma única noite em Ceuta. Voltei a pé e lembro de ver pessoas carregando tudo. Vendendo até o formulário de graça da fronteira, porque muita gente nem sabia preenchê-lo.  As pessoas traziam para Africa sacos de papel higiênico, roupas, malas, sapatos..  As pessoas que estavam voltando para a Africa   também pareciam trazer uma Mistura de tristeza, nostalgia e frustracão. Nessas pessoas, que voltavam para “casa” quase se podia ver o desapontamento.  Agora as pessoas que estavam indo para a Europa, assim a pé,  eram seguradas por muito tempo.  Eu era muito mais jovem, mas ainda assim, eu sabia que todos nós estávamos perdidos, deslocados no mundo… Nós éramos o ” entre-mundo”… Nos rostos, dos que partiam se via que buscavam uma vida melhor, num futuro totalmente incerto. E eles seguiam como eu…..

O meu cruzar, foi fácil, afinal eu tinha os “papéis certos”. Não por mérito meu, por total acaso como ficou tão claro naquela fronteira. Porque eu tinha nascido num outro lugar.  Do outro lado, havia centenas de taxis. Eu peguei um qualquer, pensando dentro dele e de mim que muita gente teria medo de pegar um taxi assim sozinha no meio da Africa.  Eu não, ali eu me senti bem, aquelas pessoas eram como eu “deslocadas”.

Todas essas imagens vieram a minha mente enquanto eu via o filme da Leila. E de repente veio também, o encontro que eu tive aqui em Sao Paulo. Estava indo embora de um bar na Vila Madalena quando alguém derrubou um copo no meu pé, e um cara parou para me ajudar.

Nada realmente tinha acontecido comigo. Ele me disse “ola” e disse que eu era muito bonita. E eu agradeci e comecei a conversar com ele enquanto esperava um taxi. De repente ele parou e disse:

” Para de falar comigo, eu sou do Capão Redondo”.

Disse para ele, que não fazia a menor diferença. Ele tinha acabado de me ajudar. Por que ele não devia falar comigo?”

” Olha, você nem sabe de onde eu venho, tão pouco o que significa morar lá!”

“Eu sei, eu já estive lá duas vezes, sei até das estatísticas, e a não ser que você não queira falar comigo, saiba que essa decisão é sua.”

Ele ficou meio intrigado, não totalmente confiou no que eu disse.

Eu insisti e disse

” Sabe eu confio nas pessoas em geral… Eu estive no seu bairro, expliquei os lugares,  eu também estive na Palestina e fiquei na casa de pessoas desconhecidas que conheci em ônibus. Na Kashemira… e em tantos lugares que as pessoa tem medo. Eu não tenho problema em falar com você, a não ser que vc não queria falar comigo.”

Conversamos um tempão. E ele uma hora disse assim:

“Julieta, eu estou impressionado. Você não é típica, Eu vou ser honesto, eu só queria te beijar, você é bonita, muito bonita, e eu achei que vc fosse superficial como quase todas as meninas que eu encontro aqui. No entanto, eu já sei que eu não posso te beijar. Eu consigo ver que você é tão rara que eu quero quase te tocar só para ver se vc é de verdade. E eu consigo até ver a dor que você tem dentro de você, que me faz, sem nem te conhecer, querer te proteger.  Me conta, o que te fizeram nesses lugares?”

Eu disse a verdade, tudo que tinha acontecido comigo que não tinha sido nem em lugar violento, e nem de pessoa desconhecida. E então ele me disse uma coisa tão intrigante. Primeiro ele entendeu melhor que qualquer pessoa a minha dor, o abandono de quem você confia no seu momento mais frágil.

E então ele me disse algo que me Lembrou da Leila também, ou melhor quando vi o filme, me lembrou dele…. Ele disse:

“Ju,  você é tão mais impressionante que eu. Eu nasci lá, Eu não escolhi isto. Você obviamente vem desse lado de Sao Paulo. Um lado Rico. E ainda assim, você escolheu ir ver a vida em lugares perigosos. Palestina, Kashemira, Fronteiras, Colombia. E é por isso que eu não posso te beijar mais como se você fosse mais uma menina superficial daqui. Você é profunda. Você conhece a morte, a vida, a guerra, fronteiras, muros, pobreza. Você escolhe, mesmo sem precisar, ir ver como o mundo realmente é, e não como dizem que é. Por que? Por que você não tem medo? ”

Aquela pergunta me surpreendeu… pensei na hora a respeito.. e em poucos minutos, segundos eu percebi..

“Ninguém que você mal conheça pode te fazer muito mal. Sao as pessoas que você conhece profundamente, que você confia, que podem matar a sua alma. Eu nunca tive medo de perder nada, nem de ser morta, ou estuprada porque tudo isso é tão de fora, que fica óbvio que quem te fez isso é externo, não demora para você perceber o seu inimigo…nunca nesses casos é você mesmo. Talvez por isso eu ache que deve ser mais fácil continuar depois. Alem do mais, foi sempre nos lugares mais perigosos que eu fui mais bem tratada. Foi sempre lá, que apesar de toda violência, as pessoas ainda sabiam o valor da vida, dos amigos, de abrigo, de comida, de amor….”

Então, quando eu estava falando com a minha querida amiga Leila esses dias eu me lembrei disso. Ela como eu, estudou fora, vem de uma casa linda, de um lugar privilegiado, e como eu ela sempre quis saber o outro.  As fronteiras, os refugiados, onde a vida é de fato sentida.

“Leila, o que é que eu poderia te dizer num filme?”

Eu conheço a profundeza do que ela faz. Eu vi o seu filme. Parecia quase que injusto com todas aquelas vitimas do mundo, de guerras, eu estar ali…

“Jules, você me inspira.”

Então, eu sentei para escrever isso, para me perguntar porque eu a inspirava?  O que havia sobrado de mim para inspirá-la? E de repente, me veio a mente, o porque..  No fundo, é porque na verdade a gente não perdeu a fé no ser humano. É porque nós de fato procuramos no extremo. Ja que sabemos, que lá as pessoas sabem de fato o valor da vida como uma coisa profunda. Assim, como também sabem sobre a não importância da morte.

Eu escrevo de novo por causa da Leila. Ela também me inspira. E eu tenho a sorte de tê-la como amiga em qualquer circunstância. Mesmo, quando não fazia sentido nenhum falar comigo. Ela falou. E eu traduzo tudo isso porque tanto a Claudia e a Cre me disseram que aqui no Brasil as pessoas deviam poder ler… Mesmo que eu nao saiba muito bem, como escrever em Português e nem como pontuar 🙂

http://www.leilaalaoui.com/

Da Poesia, Da Música e do tempo que querem eliminar…..

Tenho pensado sobre o tempo…. não sobre o meu tempo, tão quebrado de repente, e tão distinto internamente… mas no tempo do mundo. Nessa correria interna que se instaurou…. da musica erudita que apresenta linhas melódicas e  a re-apresenta depois em outro tom, com pequenas mudança e que exigem de um, um tempo cuidado, pequeno, de observação.
Não é novidade para quase nenhum que o mundo correu, e que tem alguns que acham o mundo  melhor. De fato, é inegável que a tecnologia e a ciência avançou, já a nossa compreensão do ser humano é quase que a mesma. Qualquer um que leia os gregos percebe isso.  No entanto, quase ninguém tem paciência de ler os gregos ou os Russos, a não ser que fosse como exercício de acumular cultura.  Seria esse o grande mal da modernidade? A obsessão por acumulo, e a falta de tempo interno? Não sei….
Ontem eu assisti na casa do Núcleo poetas declamarem enquanto Benjamim Taubkin e um percussionista que não sei o nome tocavam. Depois enquanto esperava minha prima me buscar ouvi a conversa de uma mesa.

Achei a noite linda…. E, enquanto eu fiquei naquela mesa, ouvi alguém dizer que achava que a noite devia ter sido mais organizado, que devia ter tido um tópico para as poesias.  Eu ouvi o ponto mas confesso que eu fiquei aliviada que não houvesse um tópico, uma linha, uma regra…. que tinha sido quase que um jamming de música a poesia  que seguia o ritmo dos que lá estavam no palco.  Nós éramos apenas espectadores do processo da arte. Meros e afortunados espectadores. 

 
Até tentei explicar meu ponto, mas foi meio em vão… Mas já que eu cheguei em casa e resolvi escrever ao Benjamim, e a um dos poetas. Era tarde, mas ainda assim eu escrevi…
 
Será mesmo que até a poesia precisa de um roteiro, de um tópico?  Pareceu-me bobagem, mesmo porque um tópico fixo seria quase que uma prisão…. a não ser que o tópico fosse a vida em si. Nada mais, nada menos….
 
Eu achei lindo porque fluiu…. assim como flui as rodas de choro do Isaias ( de quem estava toda a história na parede da casa do Núcleo)…. Suas rodas são todas as sextas….. acontecem sem ensaios, sem planejamento…. simplesmente  o tempo, o ritmo e a interação dos que lá estão.Lembrei, que uma das críticas que eu ouvi sobre o  filme do qual o Benjamim fez a trilha o “Eu Maior” era essa….. ” Não tem estrutura. Tinha que ter para as pessoas saberem e não se desinteressarem.”Eu não disse quase nada  sobre isso para essa pessoa…mas pensei até agora…..  será  mesmo que no mundo é necessário ter uma narrativa com começo e meio e fim a tudo?Na hora eu pensei, que  aquilo era uma concepção ocidental do mundo… principalmente dos EUA…. primeiridade, secundidade, e resolução……

Quando eu vi, O EU MAIOR, como eu disse ao Benja, eu fiquei tocada porque ele não era assim. Ele era livre…. me fez pensar na Asia…. na maneira que os Tibetanos, e asiáticos em geral contam histórias…. tāo sem  estrutura… tão dando voltas……a própria poesia é assim…. vem da experiência da vida…. da liberdade…. dos desencontro e encontros… dos mistérios., do irônico, do triste….do quase nada que é tudo.. por isso talvez seja que lugares como o Oriente Médio tenha tantas poesias… talvez fuja do conformismo da explicação de todo resto….. talvez seja a única possibilidade do novo, do subversivo… 

 
Um “Esteves sem metafísica,” e um que tem toda liberação numa fumaça, no olhar de uma menina comendo chocolate…
 
A poesia, e a manifestação dela não pode ter tópico, ter estrutura, ter ritmo para agradar a falta de atenção de um mundo que vive regido pelo mundo da propaganda… 
 
Por isso eu agradeço poetas e músicos, muito obrigada pela música que foi sentida, do percussionista que ouviu e tocou,ao Benja… e aos  poetas que se comunicaram entre eles. Nós, no fundo, somos uns privilegiados de ter podido ver a reprodução do sagrado… o que acontece quando a arte se encontra, se divide…
 
E é apenas por isso que eu digo que eu até entendo que para muitas pessoas é melhor uma estrutura… e escrevi a um deles “pelo amor deus, por vocês se encontrem então a sós,  e convidem só quem de fato sabe ouvir em silencio, sem ser parte, sem precisar de resolução.
 
E de fato, nós não avançamos muito emocionalmente. Perdemos a paciência do tempo interno….Não todos nós, mas infelizmente muitos de nós.