Essa história vai ser da viagem ônibus de Mandalaypara Kalaw. Antes de ir penso nos três ônibus que tomei. Só no aberto não passei frio. Pergunto ao atendente do hotel e ele diz que não faz muito frio. Pergunto se é aberto, ou se tem Ar condicionado.
” claro que tem AC.”
“Obrigada vou levar mais roupa.”
” não precisa não faz muito frio.”
Como sou super friorenta eu coloco calça comprida e coloco meia calça de inverno que é a que eu usei no avião e todas as noites pois sem ar passo calor, com Ac passo frio e ventilador também. Saio de manga curta e coloco nas minhas duas bolsas blusa de manga cumprida, malha , lenço e meia.
Desse lado do mundo, muito dos carros são estilo britânico o motorista senta do lado direito. Lembro que com quinze vi a primeira vez na Austrália e me deixou até enjoada a curva ao contrário. Depois fiquei acostumada. Vendo alguma foto que postei o André reparou isso.
Agora em Burma todos que eu tinha visto eram assim menos esse. Nessa minha van o motorista está do lado esquerdo. Fico tão intrigada e resolvo olhar mais carros. E não é que tem dos dois tipos aqui. Intrigante.
Percebo isso quando tenho que colocar meia, blusa, lenço e casaco. E percebo que sou a única ocidental. Tinha colocado meu lenço na cabeça e dormido. Acordo quando o ônibus já tinha pegado todos seus passageiros e já estamos na estrada.
Todo mundo está com véu na cabeça. E está dormindo. Não estão de véu porque são muçulmanos. Estão com frio.
Acordo bem na hora que estamos para parar. Então posso ver meus companheiros de viagem.
Somos 9 passageiros e o motorista. Tem um monge, 4 mulhere de Tamei, e eu de calça. 3 homens de Long Ji, um de calça. E o motorista eu não sei. Quase todos estão de chinelo.
Paramos vamos ao banheiro. E vejo que vamos comer. Olho um prato de uma senhora e tento perguntar em Burmes e ela sabe falar inglês. Digo que quero o mesmo.
Vem arroz com batatas, vegetais, é um milhão de coisas que não sei o que é e como e acho maravilhoso porque é apimentado. Antes de eu pedir algo para beber a senhora me traz um bule e eu mais uma vez fico radiante.
Todas as vezes que almoço em restaurante com a minha avó e pedimos uma caipirinha e um chá. Trazem o chá para minha avó e para mim a caipirinha. Rimos e trocamos. Minha avó me explicou há séculos que chá é uma planta específica, que hortelã não é chá é hortelã.
“O certo é você pelo menos saber que é uma infusão de várias folhas. Não precisa pedir porque fica muito pedante. Mas chá é a folha do chá.”
Pois é dessa infusão que me trouxeram eu não tenho a menor ideia o que seja. Sei que gosto dela porque gosto de agua quente. Lembro que foi no Sahara que o guia me disse que era bobagem beber água gelada. Não sei se é por falta dela ou não mas a sua explicação era: Água gelada esfria o seu corpo e em segundos o seu corpo tem que gastar muita energia para se esquentar. No deserto não podemos perder energia assim.
Seja qual é a razão, sei que faz anos que prefiro não beber nada gelado e preferencialmente quente. E pelo Brasil é meio difícil de explicar isso. Comecei a beber água quente na China com minha amiga Pet que é de lá. Aqui nem preciso pedir. Tudo isso, bebida, comida por 1000 kyiat. Menos de 1 dólar.
A estrada está linda. Estamos dando voltas e mais voltas numa montanha toda cheia de árvores. Difícil de tirar fotos. Curva atrás de curva. E eu encanta quando percebo que o menino de trás abre a janela. Um local abalado e eu super bem.
Eu penso em emprestar a ele tagger balm ( creme de cânfora) e me lembro que já dei para seu Win que tava com dor no braço. Ele ficou tao feliz de usar que eu dei a minha. Senhor Win não tem muito dinheiro para comprar eu acho. Nem eu vi por aqui como vejo na Tailândia. Para esse menino do ônibus pelo menos tenho papel higiênico para ele se limpar e ele me agradece muito.
De repente o ônibus para e vem um menino me perguntar se já tenho hotel. Digo que não e ele me aponta um barato de 10 dólares. E eu pergunto do hotel na minha frente ?
“Custa 30 dólares. ”
Ele me diz que tem internet , tem café da manhã. Nem vou procurar outro. Pego de cara esse e me dão um quarto lá em baixo por preço baixo. Vejo que a internet não é no porão. E o primeiro está lotado. No terceiro a internet não funciona.
Ela me troca pela terceira vez e diz que esse custa 40. Eu digo que vou embora. Essa é a primeira vez que algo assim se passa. Eu me espanto. Ela diz que faz 30 e quando me traz ao quarto fico espantada. O quarto é umas dez vezes melhor que todos os outros. E agora já até sei que a internet é veloz!
Tem cama, cadeiras, televisão, frigobar, abajur, penteadeira, águas, um bule eletrônico, chás diferentes. No banheiro tem até banheira, chuveiro, secadora. Deve ser o melhor hotel daqui. Quando abro a cortina vejo a avenida, a Pagoda, as montanhas e os passantes. Que lugar lindo.
De fato, se existem muitas vidas eu estou sendo presenteada de uma maneira que só um budista entende. Ao mesmo tempo leio que os tão presenteados do Morumbi querem aplaudir a polícia que matou uma criança de dez anos.
O que será que se passa conosco? Diante de tantos privilégios não apenas somos indiferentes aos outros mas temos a audácia de não reconhecer que tudo que temos vem pelo menos dessa vida de boa educação, de amor, de bom material genético, de boa alimentação?
Eu já até passei a acreditar em outras vidas. Não por medo mas pela gratidão e reconhecimento de algumas pessoas que vejo por poucos segundos e sinto que as conheço faz tempo.
Então eu sento aqui para escrever. Ligo meu bule elétrico. Sinto me feliz de poder fazê-lo ainda que num telefone e sem editar, por nem saber fazê-lo.
Ainda que meus pais e eu sejamos tão diferentes eu sou grata por eles terem me feito por objetivos tão distintos tão forte. Meus pais fizeram o que eles achavam que era o melhor. No entanto, quando embarquei sozinha eu fui a cada dia me descobrindo mais. Sou grata ao André o homem dos atos que mal me lê. E agora. Eu já nem ligo mais. Sou grata por ele saber e apoiar eu ser assim como sou. E acima de tudo sou grata a minha avó Lucia que sempre permitiu o outro ser quem ele é. Sempre apoiou.
Aos 91 aprendeu a me ligar sozinha de face talk, de um Whatsapp para saber como eu estou e contar que gostou muito do senhor Win. E me perguntar porque só no 21 pode falar comigo. Então eu entro nesse maravilhoso hotel graças à minha avó. Me eximo da culpa pensando na minha avó. E indo bem a fundo reconhecendo que podia ficar no lugar mais barato mas hoje eu não preciso. E me eximo mais fortemente quando isso não me torna uma pessoa deslumbrada, egoistas e indiferente a todos. E quando vou mais a fundo percebo, que não tem jeito, eu sinto um pouco de culpa, mas também gratidão.
Adorei seu relato das fases da viagem e suas peripécias!! Bjs