Numa leve percepção minha eu entendo que a psicologia é baseada na ideia de que uma memória relembrada e libertada em palavras a um psicólogo leva uma pessoa a uma libertação. Agora o que eu aprendi dos cognitivistas e dos neuro-ciêntistas é que relembrar eventos difíceis fortalece redes neuro-logicas prejudiciais. Portanto eles se focam em criar novas redes neurológicas. Já o budismo te leva a ser compassivo e consciente das suas ações. O sofrimento vem de se focar demais no ego, e de menos no outro. Vem de não sabermos a origem dos nossos sofrimentos. Eu passei por todos esses caminhos buscando.
Quando eu quase morri na Asia em setembro de 2013 eu estava do lado de alguém que eu amava e confiava. Ninguém nunca soube muito bem porque eu tive um ataque epiléptico sequencial.
E lá fui eu de hospital a hospital de neurologista , psiquiatra a psicólogo tentar curar meu cérebro e a minha mente. Já que tudo na minha vida foi tão exposto eu não tenho problema de fazer isso aqui mais uma vez. Quem sabe ajude a alguém.
Aquiles, meu psicólogo reichiano, sempre me dizia que eu precisava me lembrar o que tinha me deixado tao vulnerável. A princípio eu achava que era a doença da minha avó. Ele cria que isso era impossível.
Depois de ir semanas e semanas lá resolvi que era tempo de ir para praia sozinha carregando nada alem de um livro do Mathieu Ricard, um biólogo de carreira muito promissora que tinha virado lama. Nesse livro ele conversa com seu pai Revel um famoso filosofo. O livro vai do budismo a filosofia passando pela neuro-ciência e a física. O livro me trouxe paz e libertação me relembrou o que muitos lamas tinham me dito por muitos caminhos.
Voltei e larguei minha terapia. Aquiles me disse que eu não era tibetana. E eu expliquei que eu não achava que ir lá e falar de mim me trouxesse nada além de fortalecimento do ego. Ainda mais importantemente eu não queria aquela linguagem de descrição na minha vida. Disse que quando eu pensava nos psicologos que conhecia eu via uma enorme busca de espaço pessoal. Resoluções pessoais. Eu não aspiro a isso. Já estamos nessa sociedade que tem isso como valor. Eu aspiro a calma a consciência e a paciência dos Tibetanos que eu encontrei pelo mundo. Partimos amigos.
Continuei lendo os Tibetanos e dia desses o Fernando, meu amigo de anos, quis ver o famoso e-mail que foi mandado aos meus amigos quando fiquei doente. O e-mail que me destruiu na época. E que eu li só depois de muitos meses. Eu que não o lia há muitos meses. Reli. Coloco o aqui. O e-mail é esse:
”
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Queridos amigos, amigos queridos da Ju,
Essa mensagem estava para ser escrita há dias, até porque vcs não receberão nenhuma mensagem de Julieta por um bom tempo.
Para quem não estava sabendo nem por alto,
Ju teve uma crise de mal epiléptico em Bangkok e passou três semanas num hospital local onde se tentou de todas as maneiras cortar as descargas elétricas em seu cérebro até a decisão radical de entubá-la, deixando-a em estado de coma induzido de maneira a poder se administrar uma dose altíssima de medicamentos sem que ela tivesse uma parada respiratória.
A eletricidade mais ou menos controlada, Ju despertou mas não sem sequelas. Não vou medir palavras, queridos: aquela Ju que todos nós conhecemos não existe mais. Houve uma brain damage que os médicos agora tentam analisar para ver o que é ou não reversível. Ninguém alimenta muita esperança. Cognição, termo tão precioso para ela, deixou-a. Ju não consegue ler nem escrever, na verdade ela não consegue sequer identificar letras ou números.
A tela de computador é um mistério para ela. Noções temporais e espaciais estão severamente comprometidas. Ela ouve vozes e não consegue distinguir sonhos/imaginação/memória da realidade. É incapaz de realizar as funções fisiológicas mais básicas sozinha. Tem dificuldade em identificar um interruptor de luz ou mesmo virar uma chave.
Mas ela ainda reconhece as pessoas, e fala… com dificuldade, sim, pois muitas vezes se esquece do que estava falando ou da palavra que queria usar. Sua memória prega peças: ela me pedia todo dia que lhe repetisse o relato de sua internação, para esquecer no dia seguinte. Mas às vezes se lembra de histórias do baú, ou me contava histórias de outras viagens (cuja veracidade não tinha como checar, mas pelo menos compunham uma narrativa medianamente coerente).
Quando voltamos ao hotel, antes de ir para o aeroporto, ela de repente parou na frente do quarto 702, que era o nosso antes do ataque – depois eu tive que mudar de quarto. Enfim, exemplos de comportamento desviante, infelizmente mais preocupantes que não, abundam, e eu vou poupá-los aqui.
Inútil dizer que essas três semanas foram seguramente as piores de toda a minha vida. Em alguns momentos ela corria risco de morte, mas só uma chamada do médico dela aqui no Brasil convenceu os pais a irem me ajudar em Bangkok. Aliás, agradeço muito a ajuda da mãe, dona Helô, sem a qual teria eu caído de exaustão no quarto de UTI ao lado do da Ju.
Mas não quero aqui entrar em considerações familiares, pois isso tb me trouxe alguns aborrecimentos desnecessários, e é a família que agora tomou as rédeas do destino dela. Eu mesmo caí doente com aguma espécie de infecção bacteriológica no dia seguinte à chegada no Brasil. Mas também, depois dessas três semanas de perrengue, ainda passei os últimos três dias, incluindo a viagem de volta a SP, sem dormir (não é exagero). Minha resistência também pediu arrego.
Assim que para mais notícias sobre a Ju, melhor contactar a mãe. Eu devo voltar para Zurique no fim dessa semana, mas também ficarei feliz em ouvir de vcs. Ainda me dói demas falar a respeito, não consigo nem ouvir suas músicas sem ter um treco. Às vezes penso que isso que aconteceu é pior que a morte. Pois ela está aqui… mas não está mais.
A esperança é que uma nova Ju renasça desse quadro (há a suspeita de que ela sofra de um mal chamado Mesial Temporal Sclerosis, que é um bicho horrível de feio, mas que pode ser atacado com uma cirurgia). Fato é que depois do “redespertar”, ela está uma pessoa bem mais carinhosa e muito mais sensível a carinho. Terna como um bichinho, she’s still a sweetie… her own way. Vou parar por aqui antes que role um mellow down embaraçoso demais. Beijo grande a todos, Edu”
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Eu reli ao lado do Fe e senti verdadeira compaixão pelo Edu.
É verdade que eu nunca mais fui a mesma. É verdade quase tudo aquilo que ele escreveu. A maneira que ele me matou simbolicamente me fez muito mal naquela época.
E e eu voltei ao que os Tibetanos já tinham me dito. Aquilo que eu re-encontrei no livro do Mathieu Ricard emprestado ao meu pai por seu novo grande amigo. Aquilo que eu sempre soube estava lá. Estava lá a história da faca. A história é mais ou menos assim.
“Quando um homem enfia uma faca em você, você sente ódio da faca?”
“Não.”
“E do esfaquiador?”
“Sim.”
“Não deveria. É um estado impermanente. Uma sinapse ruim. Sua responsabilidade é muda-la.”
“E se eu não consegui? Fujo?”
“Sim. Mas não para se proteger. Para proteger o outro. Aquele que não tem consciência. Vc que tem consciência é responsável pelo mal que é infringindo a você e ao outro.”
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Eu não sei nem dizer quanto tempo faz que eu sei disso. Ainda assim eu odiei o meu esfaqueador. Por tanto tempo. Eu odiei o abandono, o desaparecimento. Quis morrer tantos dias e noites. Não cria nem queria ver mais nada. E como sempre voltei aos Tibetanos.
Um lama não entende a presença do ódio. Falou-me da faca e eu disse que odiava o esfaqueador.
“Então você não entende a história da faca.”
“Como não? Eu entendo e não podia evita-lo. Eu fiquei doente!”
E o tempo passou, porque na verdade você nunca de fato entende o que te foi dito antes da hora certa.
De repente tudo que o Aquiles me disse e que me disseram os Tibetanos e os Indios se encontraram.
Como num golpe de mágica eu me lembrei.
Claro que eu sabia. Em todas as minhas alucinações durante o Coma o Edu me abandonava.
Eu acordei perdida. Perdida no meu cérebro mas acima de tudo dividida entre o que eu queria acreditar e o que meu corpo já tinha me evidenciado.
E ali na frente do mar eu entendi mais a fundo do que karmapa, Rinpoche, Dalai lama, lama lobsang, e tantos outros lamas tinham me dito com a história da faca.
A libertação vem da consciência. A consciência te devolve a responsabilidade.
Faz mais de uma ano que isso aconteceu. E o Edu estava certo, eu sou uma nova Julieta.
Essa Julieta cre essencialmente nas mesmas coisas. No entanto é capaz de entender mais a fundo os Indios, os Tibetanos e o Aquiles.
O processo de percepção e de analise se dão em lugares distintos do cérebro.
O que aprendi mais profundamente é que dopamina por dopamina é besteira. Ideia por ideia também. De tudo que eu vivi eu aprendi que há varias linguagens de descrição.
O culto do ego leva a enorme sofrimento. A separação de percepção e analise também.
Esses dias eu conheci a minha versão masculina. Um menino que voltou da Asia depois de quase morrer. Enquanto ele buscava mais solução em movimento eu ouvi desesperada, levantei e fui dançar.
Sabia que não podia fazer aquilo, mas sabia que aquele buraco era só mais um. Intuía que como me foi dito antes se não parasse cairia de novo.
A gente nunca imagina que a queda pode ser muito pior. E ali no que vc acredita ser o fundo do poço pode não ser. Não há o que dizer a uma pessoa no buraco.
Os índios nos mandam deixa-los lá. Mas nó dizemos porque nos foi dito, até pelos os índios mesmo.
E um dia de repente vem as palavras proferidas há muito tempo. E de repente ali naquele dia você entende. E aquilo finalmente te liberta porque você identifica a sua responsabilidade.
Ser responsável te liberta, te permite ter compaixão ao esfaqueador. Aquele que não tinha consciência.
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Ps: Recebi muitas mensagens tocantes depois desse email. Queria que vcs vissem isso que é da Laura.
Faca nao tem consciencia. esfaqueador por definicao nao tem consciencia. quem abandona por definicao nao tem consciencia. nao tem consciencia do outro. e sem consciencia do outro nao existe amor. e sem amor nao existe amante. e sem amante nao existe traicao como agressao. e sem agressao nao existe raiva.
tudo resolvido. voce livre. voce inteira. voce como voce se merece. e como eu geralmente gosto de te ver.