Aimé Cesaire: Violência é Desumanizar.

viol

Hoje acordei e recebi um e-mail de um desconhecido e, ainda sonolenta, lí coisas e que me surpreenderam.

Como é que eu ainda me surpreendo? me perguntei.

Li e percebi que ele sabia muito sobre mim, e sabia do meu desaparecimento. Imaginei que esperava uma resposta falando de algo muito violento que tivesse acontecido comigo no Norte do Brasil, na America Latina, no Oriente Medio, na Ásia ou na África. Soube que ele nunca tinha estado por esses lados. Qualquer um que tenha estado por alguma dessas partes, sabe que toda pergunta vem carregada de interesse. Toda palavra é colocada minuciosamente para, secretamente, descobrir algo específico. Sentí-me segura, respirei fundo e decidí que responderia alguma coisa.

De cara, e abertamente me perguntava sobre abusos, situaçoes violentas. Achei que a mensagem, em si, era absurda, tinha já suas respostas mas percebi que para alguns pareceria mais violenta. Reconheço que talvez tenha sido por puro interesse, ou sarcasmo, que eu tenha respondido. De qualquer maneira que vítima não tem interesse na atenção do outro? De todo jeito, imediatamente me vieram muitas imagens do que eu vi, li, soube por todos esses anos.

Eu imagino que não foram típicas as minhas imagens. De cara me veio a noção de que a violência em direção a mulher é fomentada, principalmente, pelas próprias mulheres. Afinal, reduto de homem machista, é em geral onde o pai quase não faz parte da criação de um filho, a não ser para silenciá-lo.

Depois me veio à cabeça uma coisa mais preocupante: que no final, a condenação da violência sobre a mulher, também é, em si, uma violência ao homem. Porque ainda que sejam mais afetadas corporalmente, financeiramente, psicologicamente, etc., essa violência não descrimina por cor, ou sexo, ela é uma violência pior, ela é em geral uma violência ao ser humano.

Quantas vezes não vi isso pela Ásia, o Oriente Médio, a Europa, a Ámerica Latina, e o norte da África? Muitas vezes! Fiquei na casa de pessoas que conheci em ônibus na Palestina, na Kashmira, no norte da Africa, no leste Europeu… e eu nunca fui mal tratada por esses desconhecidos. Meus amigos sempre se chocam com essa fé pelo ser humano inerente a mim.

De fato, a India é um lugar machista, o norte do Brasil é machista, mas eu viajei sozinha por lá e quando me sentia minimamente atacada eu começava uma conversa com a pessoa sobre sua família.  Em outras palavras, eu humanizava aquele encontro, entre dois seres humanos tão cheios de histórias e preconceitos.

Por isso, enquanto eu lia esse tal e-mail de um desconhecido, eu pensava que a violência sobre a mulher, também é uma violência sobre o homem. O escritor pós-colonialista Aimé Cesaire no seu livro “discurso sobre colonialismo” em poucas páginas define que a maior violência de um colonialista é desumanizar  o próprio colonizador… Só assim, ele argumenta, alguém pode fazer tão mal a outro ser humano. Primeiro ele precisa se violentar, se “des-humanizar.”

A violência contra a mulher, no fundo, nada mais é do que isso… Uma completa incapacidade de ser presente, de encontrar o outro. No fundo é muito mais fácil matar o corpo, a propriedade do outro, do que a “alma”. Talvez seja por isso, que vítimas de violência cotidiana não consigam sair dela, as pessoas continuam lá. Aquilo é parte daquele sistema, você não consegue ver o seu dominador, como não consegue tão pouco  se perceber parte daquilo. Na rua, quando é um estranho, é mais fácil de ver quem é que você abomina. Tá de fora.

Nesse email, esse desconhecido me perguntava sobre a minha experiência de violência. Ou melhor AS MINHAS. E como eu resolvi responder honestamente eu disse: ” Imagino que queira que eu fale mal de algum povo, de uma religião, de um ato internacionalmente terrorista. No entanto, não tenho razão pessoal nenhuma para condenar nenhum destes, se você quer saber de fato a maior forma de violência que eu já senti,  eu te respondo sem hesitar, foi aquela que veio de alguém em quem confiava, daquele que estava do lado, por dentro, e jurava ficar para sempre, mas acabou tendo que me levar a um hospital, assistir eu entrar num estado de coma, me acompanhar por pouco tempo internada, e depois, simplesmente desaparecer, sem deixar de dizer aos meus amigos que a minha morte teria sido melhor, pois eu já não existia mais.  Esse tipo de traiçao quase mata sua “alma”.

Por isso, eu, acho muito mais fácil reconhecer a violência direcionada a um Palestino do que a um Israelence. Eu tenho amigos dos dois lados do muro. No entanto, a violência que os Palestinos sofrem é tão evidente que eles não hesitam em saber quem é o seu agressor, já os Israelenses também sofrem, mas precisam fazer mil manipulações no cérebro para legitimar aquele abuso dos quais eles são obrigados a fazer. Se declaram muitas vezes heróis e vÍtimas. No entanto, até meus amigos de regiões destruidas do Oriente Medio reconhece que a tortura de um inimigo é violenta, mas não surpreendente. A violência que eu sofri, até para eles era pio,r pois vinha de alguém supostamente, plenamente, confiavel.

Por isso,  que eu não desconsidero o sofrimento das mulheres, mas simplesmente eu não o afasto do sofrimento dos homens. Porque nisso, eu concordo com o Cesaire…. Apenas quem é desconectado demais (e no fundo todos nós somos um pouco) que pode fazer tanto mal à um outro. É fundamental nos afastarmos de nos mesmos e depois daquele na sua frente.

No fundo, devíamos todos aprender estar melhor dentro do nosso corpo. Estar mais presente. E mais à vontade com as nossas limitações e as limitações dos outros, mas isso, é, de fato, bem mais difícil do que falar e condernar o outro por qualquer violência…

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