Dizem que tudo tem um fim. Já eu, prefiro sempre achar que tudo transita de um estado para o outro. O próprio Cidāo, dono do “bar do Cidão” já tinha tido que mudar o bar de lugar uma vez… ele transitou, mas o bar sempre ficou aqui no mundo. O bar até eventualmente voltou ao mesmo lugar e foi então que o inesperado aconteceu: ele mesmo o Cidao deixou a terra.
Na época, eu estava no meio do leste europeu quando recebi dezenas de mensagens me contando do acontecimento.
Coloquei o pensamento de lado, e voltei para o Oriente Médio querendo voltar depois para a Asia. Mas o Cidão não saia da minha cabeça.
Aos poucos fui me conformando com aqueles pensamentos entrando em minha mente, e aos poucos eu tive que observa-los mais claramente para entende-los melhor.
Um dia eu finalmente percebi que o bar do Cidão tinha virado de alguma maneira a representação de casa para mim no Brasil.
Então voltei pois presa nesse sentimento, percebi um medo de que talvez um dia a minha verdadeira casa desaparecesse do mundo. Primeiro achei que tinha medo perder minha casa em São Paulo… La da Palestina, do lado de pessoas tão presas a terra e de onde suas casas foram roubadas foi o que me veio a cabeça na hora. Eu errante…tive medo de ficar perdida pelo mundo… Mas ainda mais claramente ficou em Israel do lado de minha amiga Michal, de repente ficou obviou que o meu sentimento de casa deveria ser fincado em laços.. às pessoas. Voltei assim, me sentindo quase que uma refugiada de mim mesma.
Então logo visitei o Bar do Cidao. O bar continuava lá. Sem o Cidāo. Ele fazia falta ..sempre despachado, dando broncas nos clientes, mudando as pessoas de mesas para que coubesse todo mundo naquele pequeno boteco, vez ou outra estava dançando pelo micro espaço no meio das mesas.
E então foi a Rose sua viúva que passou a tomar conta do bar. Nesses últimos tempos eu fui tanto lá que fiquei amiga da Rose. Brincava frequentemente com “Zé”Maria, o pequeno filho deles.
O Zé, um privilegiado que antes mesmo de fazer 10 anos cresceu com a melhor música de Sao Paulo. Todos os dias o Bar estava aberto, na maior parte dos dias tocava choro. Alguns outros ritmos também soaram por lá.
Sempre me perguntavam porque eu Gostava do bar. Tão simples e tão difícil de explicar. Talvez, porque fosse quase que um refúgio dos grandes músicos que apareciam por lá de re pente, ou simplesmente porque parecia meio casa.
Claro que era o Cidão, claro que era a Rose ou mesmo a Dona Inah que lá tantas vezes esteve, e que me disse que estava lá desde o começo. Donah Inah que um dia desses me confessou que doía para ela ir ao Bar agora desde a morte do seu amigo Cidao.
É injusto eu falar de apenas de alguns incríveis músicos que ouvi por lá. É bobagem eu contar para voces quantas vezes eu pedi para eles tocarem para mim Migalhas de amor, Vibrações, Doce de Coco..dentre outras do Jacob e muitos outros…. eles tocavam porque alguns ficaram meus amigos.
Com a partida do Cidão ficou diferente, mas Rose cuidou com maestria do bar. Eu conheci o Bar do Cidão tarde, mas nesses últimos anos eu fui muito lá. Quem foi tanto como eu, começa reconhecer até seus usuais frequentadores.
Perguntei a Rose uma vez se ela estava cansada de cuidar do bar sozinha. E ela me respondeu que a noite quando os músicos chegavam era a hora do dia que ela mais gostava.
E nesse domingo, o bar do Cidao abriu-se pela sua última vez. Cheguei lá as 7 da noite para ter mesa para ficar um pouquinho mais na “nossa” casa. Não fui a primeira a chegar. Nos saudamos e aos poucos foram vindo todos.. Um a um… rostos familiares dos quais o nome eu já não me lembro mais.
E música foi rolando.. eu as vezes não conseguia conter minhas lágrimas. Por sorte o Tom estava lá para me consolar um pouquinho.
Até esse domingo eu nāo sabia exatamente porque o Bar do Cidao se fechava? Rose me contou que depois iria abrir uma loja de bolo.
“Rose, mas pq voce está fechando?”
“O prédio foi pedido de volta, e vai ser demolido.”
A esta altura as migalhas do choro devem estar agora no chão rolando pela vila.
Quando as coisas terminam é difícil, mas quando elas sāo demolidas sem explicação parece bem pior.
Ainda bem que o que conseguia sair, saiu do prédio pela noite a dentro, saiu chorando por tudo que era instrumento, sambou para que os que precisassem dançar pudesem faze-lo. Eu enxerguei o Cidão ali no meio daquela barulheira dançando. E assim amanheceu a segunda- feira .. la mesmo no Cidao.
Se nada termina estou ansiosa para que se transforme logo porque nós os refugiados estamos sem casa….